14 de dez. de 2013

Conto de Natal - Três Cantos - Parte 02

Parte 2 – Miriam

Miriam nascera no distrito cabofriense Tamoios, há  15 anos. Naquela época, havia mais vilas de pescadores do que casas de veraneio na região. E seu pai, Joaquim, era um desses pescadores que moravam nas pequenas casas de alvenaria à beira-mar. Essas casas geralmente possuíam um só cômodo que servia de quarto, sala e cozinha, que na verdade se restringia a um fogão improvisado feito de tijolos e grelha de ferro enferrujada. O teto da casa era tão rebaixado que se podia trocar a lâmpada apenas esticando as mãos para cima. E o casebre de Joaquim e Ana Nazaré, mãe de Miriam, era um dos privilegiados que possuía eletricidade, ou o mais próximo que se pode chamar de um fio puxado clandestinamente dos postes de iluminação pública à margem da Rodovia Amaral Peixoto. Banheiro? Não, não tinha. Esse cômodo tão essencial era um luxo ainda maior nas casas do que o “gato” de eletricidade.

Miriam sempre foi uma menina curiosa e observadora. Era dessas pessoas que aprendiam vendo os outros fazerem. Teria brilhado desde cedo na escola se não tivesse descoberto esse luxo extremo tão tarde, aos 12 anos, quando começou a ser alfabetizada numa precária escola municipal.

Com a especulação imobiliária na região, as comunidades de pescadores e áreas de restinga e manguezal tiveram que ceder lugar – obrigados e a contragosto, obviamente – a enormes condôminos de loteamentos, como o Verão Vermelho, Orla 500, Santa Margarida.

Os colonos se viram obrigados a marchar para cada vez mais distante de Cabo Frio, onde se instalaram em barracos e casas ainda mais precárias que as antigas moradias, às margens da foz do Rio São João, na fronteira de Tamoios com Barra de São João, no bairro Aquarius.

O princípio foi penoso, como sempre é o princípio de tudo. Todavia, com perseverança e muito trabalho que essa gente tem, faz e acontece como ninguém, foram evoluindo e melhorando aos pouquinhos, embora continuassem em precárias condições sub-humanas. Mas a proximidade  com Rio das Ostras, recém-emancipada de Casimiro de Abreu, e Macaé, que recebia uma base de exploração petrolífera da Petrobras, foi o fator que contribuiu com a pequena nova comunidade de pescadores de Tamoios.

A família de Miriam era composta somente dela como única filha, o pai Joaquim, a mãe Ana Nazaré e um pescador idoso e aposentado, Seu Pedro, velho amigo do pai de Joaquim, que se tornou o “avô” da casa, pois era um solitário sem família que o acolhesse. O grupo possuía uma pequena economia que foi acrescentada à irrisória indenização pela desapropriação da vila de pescadores. Com essa miserável fortuna, a família conseguiu, ao menos, erguer uma casa um pouco maior, com uma pequena divisão que servia de cozinha, e um puxadinho do lado de fora que servia  de banheiro. Com o dinheiro que sobrou da construção, erguida pelos próprios donos, deu para comprar um fogão e até um botijão de gás.

Os anos foram passando. As cidades vizinhas foram crescendo. A economia do país melhorava, melhorando as condições de vida como a do pessoal de Miriam, que melhorou igualmente. Conseguiram até ampliar a moradia para um quarto a mais e um banheiro decente, com direito a louças brancas e chuveiro elétrico. A cozinha, o primeiro luxo na vida dessas pessoas, foi ampliada para fora da casa, onde ganhou uma varanda coberta que virou uma pequena pensão de comida caseira e barata, bastante solicitada até pelos veranistas que iam à cidade nas férias, por conta das “mãos de fada” de Ana Nazaré.

Graças a esse progresso, a pequena Miriam pôde, finalmente, conhecer aquele lugar que só ouvira falar, como se fosse uma história de Contos de Fadas: a Escola. Mesmo cansada por trabalhar o dia inteiro, ajudando a mãe na pensão, a menina ia feliz da vida, maravilhada, e aprendia a magia contida nas figuras das letras e dos números.

Miriam e sua família eram íntimas das dificuldades, mas jamais reconheceram o sofrimento. Eram guerreiros sobreviventes e em suas veias corriam o sangue dos antigos Quilombolas e Tamoios, que se espalharam e se distribuíram geração após geração, resistindo à devastação causada pelos brancos, embora oficialmente tenham sido todos exterminados.

E Miriam era aquela linda mistura indefinível, de corpo firme e torneado, com os cabelos de cachinhos miúdos que balançavam sobre os ombros, e a pele naturalmente morena, enegrecida pelo mar e pelo sol.

Por não reconhecer o sofrimento, também não reconhecia a tristeza. Então seus olhos castanhos e seu sorriso muito branco eram sempre luminosos. E foram eles que acabaram por iluminar  aquele garoto da cidade grande, de feição fina, de pele negra mas pálida por se recusar ao sol.

Buscar conchas no mar era uma diversão para a menina praiana, que com elas fazia o seu artesanato. E foi voltando de uma colheita de conchas de vários formatos que percebeu que o carioca a enxergava pela primeira vez.

Ficou feliz, pois achava que ela era invisível para ele. 

Continua...

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